PENSAMENTOS E VISLUMBRES

Sri Aurobindo

            Deus não cessa um só instante de inclinar-se para a Natureza, nem o homem de aspirar à Divindade. É a eterna relação do finito com o infinito. E quando parecem afastar-se um do outro, eles apenas recuam para preparar um encontro mais íntimo.

            No homem a natureza do mundo torna-se novamente consciente de si, para que possa dar o grande salto rumo Àquele que dela desfruta. Este é o seu Possessor, a quem, sem saber, ela possui, a quem a vida e a sensação, possuindo, negam e, negando, buscam.  Se a Natureza do mundo não conhece a Deus, é porque ela não se conhece a si mesma; quando vier a conhecer-se, ela conhecerá o puro deleite da existência.

            O segredo é a possessão na unidade, e não a perda na unidade. Deus e o Homem, o Mundo e o Além-Mundo tornam-se um só quando se conhecem mutuamente. Sua divisão é a causa da ignorância, assim como a ignorância é a causa do sofrimento.
(*Purusha: o Ser espiritual, a alma verdadeira do homem)
A princípio, o homem busca cegamente e nem mesmo sabe que está buscando o seu ser divino; pois ele parte da obscuridade da Natureza material e mesmo quando começa a ver, por longo tempo é cegado pela luz que está crescendo em si. Deus também responde de modo vago à sua demanda. Ele busca a cegueira do homem e com ela se deleita como se ela fosse uma criancinha, cujas mãos procuram, às apalpadelas, por sua mãe.

            Deus e a Natureza são como dois jovens apaixonados a brincar. Eles se escondem e fogem um do outro, quando percebidos, apenas para que possam voltar a ser procurados, perseguidos e capturados.

            O Homem é Deus escondendo-se da Natureza para poder possuí-la por meio da luta, da obstinação, da violência e da surpresa. Deus é o Homem universal e transcendente que se esconde no ser humano de sua própria individualidade.

            O animal é o Homem sob o disfarce de um couro peludo e a caminhar sobre quatro patas; o verme é o Homem que se contorce e rasteja rumo à evolução de sua Humanidade. Mesmo as formas grosseiras de Matéria são o Homem em seu corpo rudimentar. Todas as coisas são o Homem, o Purusha.

            Afinal, como devemos definir o Homem? Uma alma incriada e indestrutível habitando uma mente e um corpo constituídos por seus próprios elementos.

 

O objetivo

            O encontro do homem com Deus deve sempre significar uma penetração e uma entrada do Divino no humano e uma auto-imersão do homem na Divindade.

            Entretanto, esta imersão não tem a natureza de uma aniquilação. A extinção não é o resultado final de toda esta busca e paixão, de todo este sofrimento e êxtase. O jogo jamais teria sido iniciado se fosse este o seu objetivo.

            A Alegria é o segredo. Conhece a alegria pura e conhecerás a Deus.

            Qual foi, portanto, o princípio de tudo isto? A Existência que se multiplicou unicamente pela alegria de ser e mergulhou em inumeráveis trilhões de formas a fim de reencontrar-se inumeravelmente.

            E qual é o meio? Uma divisão que luta em busca de uma unidade múltipla, uma ignorância que se esforça rumo a um fluxo de luz diversificada, uma dor que labuta pelo toque de um inimaginável êxtase. Pois todas estas coisas são formas obscuras e vibrações distorcidas.

            E qual é a finalidade de tudo isto? Se o mel pudesse provar-se a si mesmo e todas as suas gotas ao mesmo tempo, e se todas elas pudessem provar-se umas às outras e cada qual todo o favo de mel como a si mesma, tal seria o objetivo para Deus, para a alma do homem e para o universo.

            O Amor é a tônica, a Alegria é a melodia, o Poder é a cadência, o Conhecimento é o executante, o Todo infinito é o compositor e a platéia. Nós conhecemos apenas as dissonâncias preliminares, que são tão terríveis quanto será grandiosa a harmonia; mas chegaremos certamente à Fuga das divinas Beatitudes.

 

Os grilhões

            O mundo todo anseia por liberdade; no entanto, cada criatura está apaixonada por seus grilhões. Eis o primeiro paradoxo e o nó inextricável de nossa natureza.

            O homem está apaixonado pelos vínculos do nascimento; por conseguinte, ele é enredado pelos vínculos complementares da morte. Nesses grilhões, ele aspira à liberdade de seu ser e ao domínio de sua auto-realização.

            O homem está apaixonado pelo poder; conseqüentemente, está sujeito à fraqueza.  Pois o mundo é um oceano de ondas de força que se chocam e se precipitam continuamente umas sobre as outras; aquele que deseja cavalgar a crista de uma onda deve sucumbir sob o choque de centenas de outras.

            O homem está apaixonado pelo prazer; por conseqüência, deve suportar o jugo do sofrimento e da dor. Porque o puro deleite pertence apenas à alma livre e impassível; pois aquilo que persegue o prazer no homem é uma energia que sofre e se exaure.

            O homem anseia pela calma, mas ele deseja também as experiências de uma mente agitada e de um coração perturbado. Para sua mente a alegria é uma febre, e a calma, uma inércia monótona.

            O homem está apaixonado pelas limitações de seu ser físico; todavia, ele desejaria possuir também a liberdade de sua mente infinita e de sua alma imortal.

            E algo nele encontra uma curiosa atração por estes contrastes. Para o seu ser mental eles constituem o aspecto artístico da vida. Não é somente o néctar que atrai seu paladar e sua curiosidade, mas também o veneno.

*   *   *

            Há um sentido em todas essas coisas e uma libertação para todas essas contradições. Em suas mais extravagantes combinações, a Natureza segue um método, e para seus nós mais inextricáveis há uma solução.

            A morte é a questão que a Natureza apresenta constantemente à Vida para que ela se lembre de que ainda não se encontrou a si mesma. Se não houvesse o assédio da morte, a criatura estaria atada para sempre a uma forma de vida imperfeita. Perseguida pela morte, ela desperta para a idéia de uma vida perfeita e busca os meios de torná-la possível.

            A fraqueza impõe o mesmo teste e a mesma questão aos poderes, energias e grandezas dos quais nos vangloriamos. O poder é o jogo da vida; ele fornece a sua medida e revela o valor de sua expressão. A fraqueza é o jogo da morte, que persegue a vida em seu movimento e a faz sentir os limites da energia por ela conquistada.

            Através da dor e do sofrimento, a Natureza lembra a alma que o prazer por ela desfrutado não é senão um débil indício do verdadeiro deleite da existência. Cada dor e cada tortura de nosso ser contêm o segredo de uma flama de êxtase comparada à qual nossos maiores prazeres parecem apenas um tremeluzir obscuro e vacilante. Este é o segredo que gera a atração da alma pelas grandes provações, sofrimentos e experiências terríveis da vida, tão evitados e abominados por nossa mente nervosa.

            A agitação febril e a rápida exaustão de nosso ser ativo e de seus instrumentos são os indícios da Natureza de que a calma é o nosso verdadeiro fundamento e a excitação uma doença da alma. Por meio da esterilidade e da monotonia da calma pura e simples, a Natureza nos indica que o jogo das atividades sobre esta firme fundação é o que ela exige de nós. Deus atua eternamente sem jamais se perturbar.

            As limitações do corpo assemelham-se a um molde; a alma e a mente têm que se derramar nele, rompê-lo e remodelá-lo constantemente em limites cada vez mais amplos, até que seja encontrada a fórmula de harmonia entre este finito e a própria infinitude daquelas.

            A liberdade é a lei do ser em sua ilimitável unidade, o senhor secreto de toda a Natureza. A servidão é a lei do amor no ser, que se entrega voluntariamente para servir ao jogo de seus outros eus na multiplicidade.

            Quando a liberdade atua entre grilhões e a servidão se torna uma lei de Força, e não de Amor, a verdadeira natureza das coisas é distorcida e a falsidade governa as relações da alma com a existência.

            A Natureza começa com essa distorção e joga com todas as combinações às quais ela pode conduzir, antes de permitir que seja corrigida. Em seguida, ela reúne a essência de todas essas combinações numa nova e fecunda harmonia de amor e liberdade.

            A liberdade nasce de uma unidade sem limites, pois este é o nosso verdadeiro ser. Podemos encontrar em nós mesmos a essência desta unidade; podemos também realizar o seu jogo em união com todos os outros. Esta dupla experiência é a intenção integral da alma na Natureza.

            Quando houvermos realizado em nós mesmos a unidade infinita, então, nos darmos ao mundo é a liberdade perfeita e o império absoluto.

            Infinitos, somos livres da morte, pois então a vida se torna um jogo de nossa existência imortal. Somos livres da fraqueza, pois somos todo o mar desfrutando os inumeráveis choques de suas ondas. Somos livres do sofrimento e da dor, pois aprendemos a harmonizar nosso ser com tudo que o toca e a encontrar em todas as coisas a ação e a reação do deleite da existência. Somos livres da limitação, pois o corpo se torna um brinquedo do espírito infinito e aprende a obedecer a vontade da alma imortal. Somos livres da febre da mente nervosa e do coração, sem estarmos, todavia, atados à imobilidade.

            A imortalidade, a unidade e a liberdade se acham em nós mesmos, à espera de nossa descoberta; entretanto, pela alegria do amor, Deus em nós será sempre os Muitos.


All extracts and quotations from the written works of Sri Aurobindo and the Mother and the Photographs of
the Mother and Sri Aurobindo are copyright Sri Aurobindo Ashram Trust, Pondicherry -605002 India.